quarta-feira, 10 de julho de 2013

Pesquisador aponta que a arqueologia amazônica é ignorada pelo poder público.

O pesquisador Eduardo Góes Neves recebeu a reportagem do Portal acritica.com e falou sobre a imensa riqueza arqueológica do Amazonas. Ele demonstrou sua frustração quanto à falta de interesse do poder público para estabelecer no Estado um centro de pesquisa institucionalizado

Eduardo Góes Neves pesquisa vestígios arqueológicos no Amazonas
Eduardo Góes Neves pesquisa vestígios arqueológicos no Amazonas (Ney Mendes/ACRITICA)
Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Góes Neves vem regularmente à região amazônica. Em Manaus, coordena o laboratório de arqueologia que reúne milhares de peças retiradas da área de influência do gasoduto Coari-Manaus.
Relator do projeto que propôs o tombamento do Encontro das Águas no Conselho Consultivo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), ele voltou a defender arduamente a proteção da área. Leia a seguir trechos da entrevista:
Como o senhor avalia o desenvolvimento dos estudos arqueológicos na Amazônia e no Amazonas?

Se a gente olhar na Amazônia percebe que outros Estados estão com as perspectivas mais avançadas do que no Amazonas. Na Universidade Federal do Pará (UFPA) temos uma pós-graduação em Arqueologia. Temos um curso de graduação na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém. Em Rondônia a gente tem uma graduação e no Acre, o governo criou uma área de arqueologia ligada à Fundação Elias Mansur. Aqui no Amazonas, por uma razão misteriosa, que não consigo entender, o avanço da arqueologia é mais lento do que outras partes do Brasil da região Norte. O que é uma pena. No Amazonas, o único laboratório que está bem organizado é o do Instituto Mamirauá, em Tefé.

Temos duas instituições públicas, Ufam e UEA. O que elas desenvolvem?

A Ufam não abre vaga para arqueólogo. Temos hoje dois professores visitantes. A UEA criou um curso que vai acabar. Nunca teve uma sede. Durante quatro anos funcionou numa sala emprestada de uma escola municipal em Iranduba. Nunca mais feito um segundo vestibular. O curso funciona na base da boa vontade.

Como surgiu o laboratório de arqueologia que o senhor coordena em Manaus?

Quando a Petrobras fazia o licenciamento do gasoduto Coari-Manaus, o Iphan não queria conceder autorização porque já tinham experiência (ruim) prévia no poliduto Urucu-Coari. Alguns sítios foram destruídos ali e algumas peças foram guardadas em Belém. As coleções do Amazonas não ficavam no Estado. Por isso, o Iphan não queria licenciar. Então fizemos uma proposta: montar um laboratório nesta casa, em Manaus. Ao longo do caminho, a gente encontraria um lugar para a guarda definitiva. Formalmente, a guarda é da USP, mas não queria fazer isso, levar para São Paulo. Temos que fortalecer a arqueologia aqui no Estado, criar condições para que as coleções fiquem aqui. Há materiais científicos (no acervo). Tem gente que fez mestrado e doutorado em cima disso.

O senhor, anos atrás, tentou construir um centro de pesquisa em Iranduba, que não avançou. O que aconteceu?

Sim, havia um recurso da Petrobras que seria para construir um centro de arqueologia no Amazonas, inicialmente ligado à UEA, em Iranduba. Isso foi no primeiro mandato do prefeito Nonato Lopes. Mas ele nos deu um termo de desapropriação que era falso. O dinheiro acabou sendo usado para a reforma do Palacete Provincial, em Manaus.

Por que Iranduba foi escolhida para receber esse Centro?

Iranduba é uma das regiões mais ricas da arqueologia brasileira e na América do Sul inteira. É uma grande mesopotâmia porque tem dois rios, o Negro e o Solimões.  Com a ponte, a vida da cidade vai mudar de maneira irreversível. A tendência é que fique mais ligada a Manaus, o que é muito bom para quem mora lá, e para Manaus também. Mas vai ter um processo de favelização de um lado, e construção de condomínio fechado de outro. A cidade vai ficar com identidade diluída.


De que forma o município ganharia com este projeto?

A nossa ideia era aproveitar o patrimônio arqueológico, criar uma espécie de identidade, como em Icoaraci, perto de Belém (PA), onde há atividade dos oleiros, que fazem réplicas de cerâmica marajoara. Iranduba já tem olaria. A gente poderia tentar fomentar, por exemplo, uma produção de réplicas de peças arqueológicas para vender em turismo. Mas o prefeito nunca teve interesse, nunca viu dessa maneira. A Petrobras iria pagar. A prefeitura iria doar o terreno. Seria maravilhoso. Teria curso de graduação, centro de pesquisa com museu. Só que muita gente não quis.


Qual foi o impedimento para a construção do Centro?

Infelizmente aqui no Amazonas, os manauaras querem tudo para si e nada para o interior. Mesmo em Iranduba, que é do outro lado do rio. Existe uma elite cultural aqui de Manaus que nunca gostou dessa ideia. O projeto tinha um perfil mais democratizante, de acesso, trabalhar com os moradores locais, os caboclos. Com a ponte, esse patrimônio está muito ameaçado.


Como os estudos da arqueologia podem ajudar a entender melhor a Amazônia?

Hoje em dia a questão ambiental é política também. Uma das regiões mais complexas é a Amazônia. A pergunta é: o que fazer com a Amazônia? Vamos criar gado, plantar soja, montar telefone celular? Quais são os projetos? O mundo inteiro olha para nós. A arqueologia tem a ver com o passado, não com o futuro, mas ela mostra para a gente que durante anos havia um mito, e muita gente ainda acredita nisso, de que na Amazônia não tinha ninguém, que é um ambiente é difícil para a condição humana. A arqueologia mostra justamente o oposto. Aqui tivemos populações numerosas.


É o caso de Iranduba?

Em Açutuba (Iranduba) existem três quilômetros de sítio arqueológico na beira do rio. Era uma cidadezinha ocupada. A gente encontra peças de cerâmica maravilhosas, de pedra lascada. É um tesouro de informações. Temos também a terra preta. São solos estáveis. Qual o problema que temos na agricultura tropical? O pessoal coloca adubo, fertilizante, mas chove muito, e depois de três e quatro anos isso é tudo lavado. E a terra preta é um solo que não perde a sua fertilidade. Tem estabilidade muito grande. Tem gente do mundo inteiro tentando entender como funciona, para tentar criar alguns parâmetros para a agricultura.

O senhor acha que empreendimentos desenvolvidos na região, como a Ponte Rio Negro, podem destruir esta riqueza?

As terras pretas vão ser destruídas. Sou muito cético. Sabe por quê? Porque elas estão ou em locais onde o pessoal faz roça, ou então nos lugares bonitos, na beira do rio. Vão fazer um monte de condomínios ali.


Um dos principais argumentos dos defensores das grandes obras é a necessidade do progresso e do desenvolvimento. É possível conciliar desenvolvimento e proteção?

Ninguém pode ser contra o progresso. Trabalho há 16 anos no Iranduba e cansei de esperar balsa. A ponte é maravilhosa, mas as pessoas têm problemas de saúde. O mundo está caminhando para uma perspectiva de progresso com equilíbrio ambiental e social – o que não aconteceu aqui. Há uma elite, muita gente que não é nem daqui que acaba enriquecendo e não tem compromisso. Acho que, no caso da ponte Rio Negro, teria que haver um programa de acompanhamento de patrimônio arqueológico de Iranduba. Temos bases de dados. Definir as áreas de patrimônio, pensar em zoneamento. Tem que fazer direito. Só que fazer direito não permite fazer falcatrua.


Como é o seu trabalho na região amazônica?

Fiz meu doutorado na região do Alto Rio Negro, onde estou retomando alguns trabalhos. Vou continuar aqui. Tenho um projeto em Tefé, na região de Mamirauá, de mapeamento arqueológico. Outro projeto é no baixo rio Negro. Agora estou também no Alto Madeira.


Como o senhor descreve seu atual trabalho nestas áreas?

Quero entender as relações das populações da Amazônia com o meio ambiente ao longo do tempo. A minha ideia é criticar a noção meio racista de que a floresta não é um lugar bom pra se viver, de que quem vive na floresta está condenado ao atraso. Estou tentando demonstrar o contrário. Que o Amazonas é propício para a ocupação humana, que a gente tem evidências que as populações vivem aqui há milhares de anos e que existem modos de vida adaptada à floresta.


Como o senhor insere a arqueologia feita na Amazônia na arqueologia mundial?

A arqueologia amazônica, no âmbito da arqueologia das Américas, é uma área de destaque. O que me deixa frustrado é ver (claro que existem pessoas bem intencionadas) que institucionalmente o Amazonas não consegue dar conta da importância disto. É uma questão política, de falta de interesse.


Se fôssemos fazer um mapa sobre a riqueza arqueológica do Amazonas, quais as áreas que o senhor apontaria?

Toda a região. Não tem lugar que você não vá e não encontra material arqueológico. Mas têm algumas áreas realmente impressionantes. A região do Encontro das Águas é interessante. A região de Parintins, Silves, o baixo Amazonas todo é muito rico em cerâmicas de períodos antigos. É uma fronteira entre Pará e Amazonas. Já foi uma fronteira cultural importante.


Qual a explicação para esta riqueza?

Você está perto na boca do rio Madeira e da boca do rio negro. Os dois maiores afluentes se encontram aqui nessa região. É uma hipótese muito antiga. Sempre foi uma reunião de trânsito para as pessoas e de contato cultural. Mas há também em Borba, Humaitá, o Alto Solimoes.


Qual a parcela de Manaus?

A última contagem que a gente tinha feito apontou mais de 40 sítios só na zona urbana de Manaus. Temos o caso emblemático do sítio Nova Cidade, que foi destruído pela Suhab (Secretaria Estadual de Habitação). Em outros lugares do mundo com essa riqueza, o local estaria sendo usado para atrair turistas. O que me entristece é ver Manaus indo pro mesmo caminho que São Paulo foi.


O senhor foi relator do tombamento do Encontro das Águas. Como está esse processo?

Vejo assim: de um lado, a Coca-Cola e a Vale do Rio Doce. De outro, ribeirinhos, alguns cientistas e intelectuais e sociedade civil. Se a gente desce da Panair até o Encontro das Águas é uma tragédia. Tem lá o Chibatão, Passarão, Usina do Mauazinho, depois tem a Ceasa. Nos últimos 30 anos a gente destruiu um dos lugares mais bonitos do mundo, o rio Negro, por causa de interesses econômicos de curto prazo. E o Encontro das Águas é a última encarnação desse processo. Fazer um porto ali próximo é o equivalente uma pedreira no Pão de Açúcar e uma barragem nas Cachoeiras do Iguaçu. Numa nação globalizada, o país precisa ter símbolos. O Encontro das Águas é um símbolo da miscigenação. Tem valor simbólico, afetivo, histórico.


O fenômeno também está associado aos estudos da arqueologia e da história?

Aqui na Amazônia a gente tem uma dimensão do patrimônio cultural. A gente tem ideia de natureza intocada. A arqueologia mostra que essa natureza foi modificada. O Castanhal não é natural, é cultural. Quem plantou foi um índio, um caboclo. A terra preta não é um solo natural, mas cultural. Foi atividade humana. O patrimônio natural e cultural é muito ligado. O Encontro das Águas é maravilhoso. É um monumento natural, mas é uma paisagem cultural. Cercado de sítios arqueológicos. Isso tudo compõem um quadro que mistura natureza e cultura. É uma visão moderna, sofisticada sobre o patrimônio.


O que o senhor pensa da proposta de criação de um porto de carga para aquela área?

Seria maravilhoso, generoso e benemérito destinar aquela área para de uso público de lazer para uma população da Zona Leste que não tem nada. Vem muita gente para a Copa do Mundo. Vão mostrar um porto no Encontro das Águas para os visitantes? Vamos continuar enfeiando um dos lugares mais bonitos do mundo?

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