domingo, 6 de outubro de 2013

Quem é o homem por trás da pedra?




Cortesia João Carlos Moreno de Souza

Olá leitores do Para Arkeólogos. Como de costume trago mais uma entrevista sobre questões que achamos interessantes ou aquela questão que sempre quiséssemos perguntar e nunca achávamos respostas, ou pensávamos ser difícil a discussão e literalmente dessa vez colocamos o nosso entrevistado na “fogueira”. Porém como sempre tentamos trazer informações pertinentes e de forma clara a todos e não saímos por ai escolhendo qualquer um e em minha opinião ele se saiu muito bem. Creio que esse seja um conhecido de alguns de vocês. Espero que gostem.

Você poderia se identificar, dizer de onde você é, onde estudou e seu passado?

Meu nome é João Carlos Moreno de Sousa (JuCa).  De onde eu sou? Nem sei. Posso falar do meu passado. Nasci em Bogotá, na Colômbia, Mas não me considero de lá. Vim ainda bebê para o Brasil e aqui fui criado. Até os sete anos de idade vivia me mudando com a família de cidade em cidade no interior de São Paulo, passando um tempo no interior de Goiás. Quando foi tempo de eu entrar na escola minha família se estabilizou no interior do Mato-Grosso. Passei 10 anos lá, mas nunca gostei da cidade e nunca consegui me encaixar socialmente. Não me considero sendo de lá também. Quando fiz meus 18 anos, na mesma semana, fui embora pra Goiânia, em busca do sonho de me tornar um arqueólogo. E foi lá que passei os melhores quatro anos da minha vida. Apesar de ter sido pouco tempo, a cidade me acolheu como nenhum outro lugar. Se fosse pra eu considerar algum lugar como minha terra, eu gostaria de dizer que é Goiânia. Depois de terminar a graduação vim direto fazer o mestrado em São Paulo. Nunca gostei muito da cidade, mas fiz algumas amizades incríveis aqui. Fato é que mesmo tendo aprendido um pouco da cultura de cada lugar que vivi não me adaptei a lugar algum. Adoro Goiânia, e desde o ano passado Aracajú também me acolheu muito bem. Tenho passado muito tempo em Sergipe esse ano. De onde eu sou? Não sei... Sou um brasileiro que nasceu na Colômbia, vive viajando pelo Brasil desde o extremo sul ao extremo norte do país, que não tem sotaque de lugar nenhum, e tem cara de tupiniquim andino.

            Onde estudei, bom...

Ensino fundamental eu fiz num colégio particular (onde eu sofria aquilo que chamam de bullying, mas na época isso era frescura de criancinha “pobre”, cdf e chorona). Meus pais faziam o que podiam pra poder sustentar meu ensino numa escola daquelas, mesmo que a gente precisasse morar de favor no hangar de um aeroporto que fedia a veneno de avião agrícola, onde meu pai trabalhava.

O ensino médio foi numa escola freiras (urgh!). Mas na época era realmente o melhor colégio. Foi minha época de adolescente rebelde. Mas sempre bem careta (até hoje). Mas sempre com alguma implicância da freira diretora comigo.

Minha graduação foi em Arqueologia propriamente dita. Na época só haviam duas graduações em Arqueologia no Brasil. O mais antigo, que é o da Universidade do Vale do São Francisco (UNIVASF), em São Raimundo Nonato (Piauí); e o de Goiânia, que era bem mais perto de onde eu morava, no Mato-Grosso. Entrei no curso em 2007 e defendi minha monografia no final de 2010. O curso em questão é do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), Universidade Católica de Goiás (UCG) que no decorrer da minha graduação ganhou o titulo de Pontifícia (PUC GO). Virei um filho da puc. Minha experiência lá foi ótima.

Em 2011 entrei no mestrado do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP). Apesar de o mestrado ser pelo MAE, eu faço uma parte da minha pesquisa em outro departamento da USP, no Instituto de Biociências (IB). Mais especificamente no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), coordenado pelo Dr. Walter Neves. Parte da pesquisa também tem sido realizada no Rio Grande do Sul: no Instituto Anchietano de Pesquisas (IAP) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), na cidade de São Leopoldo; e no Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, na cidade de Taquara. Defendo ainda este ano.

O doutorado já está sendo encaminhado pra ter início ano que vem, na Inglaterra, mas trabalhando com arqueologia brasileira, é claro.

Gostaria que você pudesse nos falar brevemente o quê é um lítico e como nos ajuda na pesquisa arqueológica?

Lítico, basicamente, é como chamamos qualquer vestígio arqueológico de propriedade rochosa ou mineral.

Como ele nos ajuda na pesquisa arqueológica? A resposta é bem simples, mas não é curta.
            Os vestígios líticos tem sua importância baseada em dois pontos principais:
1.    É um dos poucos (senão único) tipos de vestígio arqueológico, pré-histórico, no qual é possível analisar, diretamente, todas as etapas de aquisição, produção e utilização de um artefato. Diferente da maioria dos artefatos arqueológicos, que são produzidos por técnicas como polimento, modelagem, gravura, pintura etc, a maioria dos artefatos líticos encontrados nos sítios arqueológicos são produzidos por etapas de lascamento. Estas etapas de lascamento produzem resíduos! Outros modos de produção de artefatos não deixam resíduos. É possível analisar os resíduos de lascamento e estudar todas estas etapas de produção. Esta é a única forma de compreendemos minuciosamente a tecnologia utilizada pela humanidade nos últimos 2 milhões de anos.
2.    É o vestígio arqueológico que melhor se preserva em qualquer ambiente! Artefatos de osso e de madeira raramente se preservam. Esqueletos raramente se preservam por muito tempo, e as chances de se fossilizar são muito baixas (no Brasil mesmo quase impossível pelas condições ambientais). Pinturas rupestres são facilmente degradadas em certos ambientes. Mesmo as gravuras rupestres sofrem isso. Artefatos cerâmicos, apesar da grande fragilidade (e por isso geralmente os encontramos apenas estraçalhados), tem se preservado muito bem. Mas a cerâmica é uma invenção relativamente recente da humanidade, surgindo a mais ou menos 10 mil anos atrás. No Brasil então não há registros mais antigos do que 4 mil anos. Parece muito, mas a nossa espécie já se faz presente no mundo há mais de 150 mil anos, e a humanidade de forma geral há mais 2 milhões de anos. E desde então produzindo artefatos líticos sem parar, sendo estes os únicos vestígios que se preservaram tão bem.

Fato é que mais de 90% da pré-história humana é baseada nos estudos das indústrias líticas. Tanto pela qualidade de preservação, quanto pela possibilidade de se analisar toda a história de vida de um artefato lítico.

Se isso não é de ajuda pra arqueologia, então não sei o que é... Infelizmente, no Brasil, muitos arqueólogos ainda subestimam o poder que os vestígios líticos tem para fornecer informações a respeito da humanidade.

 
Cortesia João Carlos Moreno de Souza


Por que estudar lítico já que na Arqueologia há tantos outros vieses para se pesquisar?

Dada a minha resposta anterior, eu é que pergunto: Por que não estudar o lítico? Todos os “vieses” são importantes para a arqueologia. Todos os tipos de vestígio arqueológico devem ser minuciosamente analisados. Todos fornecem informações relevantes.

Uma vez em aula ouvi que boa parte dos estudos sobre a pré-história brasileira se deu através da cerâmica, pois o material lítico, ao menos aqui no Brasil, não era tão interessante para se estabelecer parâmetros culturais de análise como tradições (clique aqui para saber mais sobre tradições na Arqueologia), por exemplo. Isso é verdade? Caso seja, algo mudou nesta perspectiva?

A pessoa que disse isso provavelmente não tem formação completa em arqueologia. Como eu já disse, mais de 90% da pré-história humana é baseada APENAS nas indústrias líticas, por falta de demais vestígios tão bem preservados. A cerâmica tem servido como diagnóstico para se estabelecer “tradições” arqueológicas no Brasil para os últimos 4 mil anos apenas.

Os estudos em tecnologia cerâmica no Brasil ainda não tem ganhado a devida amplitude, infelizmente. A maioria das análises tem se fechado numa análise de volumes formas dos vasos inteiros, e nas decorações (quando existem). Estas características têm sido utilizadas para classificar tipologias cerâmicas enquanto supostas tradições – que infelizmente alguns arqueólogos tendem a confundir com diferentes sociedades e/ou etnias. Estudos sobre as técnicas de produção de artefatos cerâmicos (tipos de queima, resíduos vegetais e minerais misturados à argila, e até mesmo as diferentes formas de modelagem) ainda estão ganhando força na arqueologia brasileira.

O mesmo acontece para os estudos de indústrias líticas. A tecnologia lítica tem tomado mais amplitude no Brasil apenas na última década. E, portanto, a importância e a potencialidade destes estudos ainda são desconhecidas para muitos dos arqueólogos mais velhos que entraram na zona de conforto deles e se recusam a aprender novas abordagens científicas.

Sobre classificar os líticos em “tradições” arqueológicas, isso também foi feito no século passado, e alguns ainda o fazem. Mas essa classificação só é realizada baseada puramente nas formas dos artefatos. Pouco te sido falado sobre sua tecnologia até recentemente. E infelizmente muitos arqueólogos se recusam a aceitar a importância desses tipos de estudo. Não que eu ache que não seja possível identificar diferentes tradições culturais no Brasil através da análise de indústrias líticas (o olduvaiense, Acheulense, mousteriense e todas as demais indústrias do paleolítico superior da Europa são bem aceitas). Só acho que falta um belo embasamento teórico por parte de alguns. Faço minhas as palavras do pai da arqueologia experimental, Don Crabtree, quando ele dizia que: Infelizmente, no passado, arqueólogos super-enfatizavam as medidas, contornos e formas dos artefatos, e subestimavam as técnicas de produção. Ele fez essa crítica sobre os arqueólogos que faziam isso no passado, sendo que ele escreveu isso no ano de 1973! Eu imagino que cada vez que um arqueólogo fala em tradições baseado apenas em características superficiais Don Crabtree deve se revirar no túmulo.

O que todos os arqueólogos devem entender é que existem inúmeras maneiras de se produzir um mesmo artefato. Existem artefatos iguais, e até mesmo representações rupestres, que são quase idênticos em diversas partes do mundo, e em diferentes milênios. Mas as técnicas de produção são quase sempre diferentes. Um mesmo artefato pode surgir em diferentes contextos dependendo da necessidade de sua existência por uma sociedade. A técnica, por outro lado, é que é passada de geração em geração, mantendo-se uma tradição cultural de “como produzir um artefato específico”.

Por fim, um arqueólogo que insiste em subestimar o poder de análise de indústrias líticas, assim como quem insiste em viver classificando artefatos em tradições pré-definidas por características superficiais, é um arqueólogo ultrapassado, que deixou de acompanhar os avanços da ciência.

Sobre os líticos brasileiros não serem interessantes... bem... isso parece uma crítica infundada de alguém que só ouve falar nos excelentes trabalhos realizados na Europa. Contudo, já existiram, e ainda existem, muitos arqueólogos europeus trabalhando no Brasil, uma vez que as indústrias líticas do Brasil tem fornecido informações inéditas a nível global. Mesmo quem é de fora reconhece a potencialidade dos líticos brasileiros.

Podemos identificar gênero a partir dos líticos? Em outras palavras, só homens lascaram no passado ou esse também era uma atividade realizada por mulheres? É possível chegar a esse nível de análise? Caso não por quê?

Eu acho impossível chegar a esse tipo de interpretação. Apesar do estereótipo do homem lascador advindo de diversos registros etnográficos, também já foi registrada a produção de artefatos líticos por grupos femininos. Por exemplo, em 2010 saiu um artigo da Kathryn Arthur na American Anthropologist sobre uma sociedade denominada Konso, na Etiópia, onde são as mulheres que produzem os artefatos líticos. Então, um estudo etnoarqueológico pode chegar a identificar o gênero, obviamente. Mas identificar gênero a partir apenas dos vestígios arqueológicos é quase impossível. Mesmo em esqueletos humanos esse tipo de identificação, em muitos casos, é impossível devido ao baixo grau de preservação dos ossos. E mesmo os estudos iconográficos beiram a hipótese.

É possível dizer que uma sociedade estava “em um nível social mais complexo” a partir dos instrumentos líticos?

Não digo que seja impossível. O conceito de complexidade ainda é muito relativo. Mas se pensarmos nos clássicos níveis de complexidade social, onde o menos complexo é a sociedade caçadora-coletora, e o mais complexo é a civilização, há de se pensar que estas diferentes sociedades realizam diferentes atividades. São diferentes maneiras de viver. Diferentes atividades refletem em diferentes artefatos para atender diferentes necessidades culturais.

Logo, analisando os instrumentos líticos, podemos identificar alguns tipos de necessidades que uma população buscou atender dentro do contexto em que ela se encontra. Mas em muitos casos, apenas o instrumental lítico não é suficiente. Precisamos de mais vestígios que nos apontem uma complexidade social.

Como posso desvendar o “homem por trás da pedra”? Como o lítico pode me dar informações sobre quem fez ele e sobre a sociedade em que este indivíduo vivia?

Acho que essa pergunta já foi respondida no decorrer da entrevista. Mas vamos falar mais um pouco sobre o “homem por trás da pedra”.

Chegar a identificar o indivíduo que produziu um artefato é praticamente impossível. Mas em alguns casos podemos identificar características particulares que apenas um exímio lascador poderia produzir. Por exemplo, vamos supor que analisamos uma coleção de pontas de projétil provenientes de um único sítio arqueológico, e de um único período de ocupação. Nesta coleção, todas as pontas apresentam a mesma tecnologia, com pouca variação na forma final do instrumento. Contudo, 10% destas pontas apresentam uma caraterística que não altera em nada sua funcionalidade, mas apenas um exímio lascador conseguiria produzir esta característica. Há de se pensar que não são todos os lascadores do grupo que conseguiriam produzi-la. É uma hipótese válida, e é um fator que vem sendo identificado em alguns sítios paleolíticos mundo afora.

Falar sobre a sociedade em que o lascador está inserido, isso o arqueólogo faz todo momento, independente da abordagem tomada sobre os líticos e qualquer outro vestígio arqueológico. Se não fizermos isso, não fazemos arqueologia.

Agora (sobre essa pergunta filosófica), num contexto arqueológico, quem é o “Homem por trás da pedra”? É o arqueólogo. O arqueólogo é o homem por trás de qualquer vestígio arqueológico. É ele quem identifica, interpreta, e cria teorias a partir destes vestígios.

            O homem por trás da pedra é o arqueólogo!

Nossa que ótimo João. Creio que essa entrevista realmente nos serve como uma forma de desmistificação de vários pontos sobre lítico e por que não uma devida valorização do tema como você disse não tão amplamente explorado ao longo da história arqueológica no Brasil. A mim foi muito útil. Obrigado João pela entrevista e saiba que o espaço continua aberto sobre qualquer coisa que queira se manifestar. Gostaria de deixar um link aqui de seu site Arqueologia e Pré-história, realizado em conjunto com Marcia Jamille e Marina da Silva Gratão. Além de seu canal no Youtube Arqueologia em Ação, feito com Marcia Jamille também.

Vocês gostaram? Não gostaram? Querem adicionar algo? Ou querem se informar melhor? Estaremos no grupo do facebook discutindo esse artigo entre outras coisas. Nesse momento além desse, por exemplo, estamos discutindo sobre o documentário Segredos da Tribo. Apareça lá e participe. Nos ajude se inscrevendo aqui ao lado e participando do nosso grupo no facebook. 

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Até a próxima.

Equipe Para Arkeólogos
 

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